segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Vida real

Cena 1
Valentina entra em casa, tira a meia-calça, o tamanco e deita seminua no sofá de camurça. Pensa em Pedro. Se levanta e vai até a cozinha beber um copo d’água. Vê seu reflexo no vitrô da lavanderia e olha para trás. Caminha sorrateiramente até a geladeira. Pega um vinho seco aberto na noite passada. Abre o armário preto de madeira velha e envernizada, segura a taça com três dedos finos e vira o líquido cor de sangue no recipiente transparente.

Cena 2
Antônio acorda. Toma um banho demorado. Cria sua própria sauna a vapor. Põe um terno de linho e um sobretudo. Pega o guarda-chuva e caminha sentido a estação. Entra no metrô, vai até o centro e se perde. Para em um bar e pede informações. Pede também uma bebida. O frio pedia uma destilada da cidade natal de Antônio. Ela é de Salinas. Traz consigo, assim como seu conterrâneo, a força de hipnotizar e camuflar seus males com um gosto amargo. Pega suas coisas, paga a conta, sai pela chuva e, quando chega à esquina, se lembra que esqueceu a informação em cima do balcão. Talvez sua memória já estivesse um pouco falha para lembrar seu destino. Volta para casa e liga para Valentina.

Cena 3
A agulha da vitrola e a tampa aberta da caixinha de música não eram as únicas coisas que ecoavam pelo apartamento. Gemidos podiam ser ouvidos. Uma mistura de prazer e dor, dependência e entrega. Carlos ouvia tudo atento enquanto tomava um uísque Red Label e esmurrava o sofá amarelo de couro gasto comprado na liquidação de garagem. Os gritos eram homogêneos, mas ele pode reconhecer. Tina e Tônio se entrelaçando. Caça e caçador, cordeiro e faca, querer e poder. Carlos tinha os olhos molhados assim como sua boca normalmente seca para conversar com Tina. Esmurrou mais uma vez. Agora foi a mesa de centro estilo rococó. Virou o copo e engoliu o ódio. Alcançou a raiva e foi até o apartamento vizinho.

Cena 4
O clima foi cortado pelas batidas frenéticas e ritmadas na porta. Tônio levantou para atender. Cambaleou irritado até a entrada e alcançou a maçaneta. Sua mão estava suada e dificultou a virada. Se deparou com Carlos pedindo silêncio pois não conseguia dormir. Tônio morreu por dentro, mas respondeu educadamente que faria ausência de sonoridade absoluta. Fechou a porta e virou um soco no rosto de Tina. Alguns golpes foram ofertados na sequência. O ciúmes estava presente assistindo a luta que já tinha um vencedor anunciado.             Tina caiu ao chão com o sangue cor de vinho escorrendo pela mandíbula. Tônio chutou o umbigo do adversário e saiu pela porta. Quando chegou à esquina novamente sua memória falhava e ele já não lembrava mais da maçaneta difícil de abrir.

Cena 5
Carlos voltou ao apartamento e encontrou uma fresta que denunciava o corpo. Arrombou-se apartamento adentro e se ajoelhou, como que para um deus, perto de Tina. Ela estava respirando, mas não podia se movimentar. Estava inconsciente ou talvez paralisada pela dor. Ele logo percebeu que aquele era o melhor momento para ele botar fogo naquela vontade indomada. Ele abaixou as calças. Despiu o corpo já nu de Valentina e a domou, a consumiu, a tragou, a bebeu. Ela agora podia resmungar baixo, mas não havia outro vizinho que pudesse ouvir. Não havia também Antônio ou Pedro que pudesse socorrê-la. Ela apenas calou e consentiu. Ele terminou, levantou-se e abriu a maçaneta ainda úmida. E agora gelada.

Cena Final
Tina ligou para a polícia, se vestiu e arrumou a cama. Deitou no sofá e pensou em Antônio e Carlos. Levantou-se e foi até a cozinha. Com passos firmes e leves chegou ao armário e pegou uma taça a mais que noite passada. Prosseguiu até a adega e pegou um vinho tinto lacrado. A campainha tocou. Ela colocou um sobretudo transparente de seda, levou as taças vermelhas até a mesa e atendeu a porta com a maçaneta agora quente. Era José. Serviu o vinho cor de sangue e limpou o sangue cor de vinho da boca. Amanhã pensaria em José e tomaria a sobra do vinho de hoje. O dinheiro era colocado em um cinzeiro. Este possuía cinzas de um pagamento de uma prostituta. O cordeiro era a faca.

“Aqui ninguém vai pro céu.” – Não existe amor em SP – Criolo Doido

5 comentários:

  1. WOOU!Só passando para demonstrar minha falta de palavras!

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  2. Sem palavras! Pra mim, esse texto está em 2º lugar no ranking do seu blog.

    "Os bares estão cheios de almas tão vazias
    A ganância vibra, a vaidade excita
    Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel"

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