segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Folhetim

Acordo todo dia às sete horas. Da manhã, é claro. Trabalho doze horas por dia, seis dias por semana, das nove às nove. Não preciso dizer mais nada. Minha vida tem sido um inferno. Não só pelo calor que passo todo dia no ônibus e no metrô, mas também pelo meu estado de saúde mental. Desejo o mau á toda e qualquer pessoa que atravessa o meu caminho. Cada minuto de atraso no trabalho, são cinco minutos a mais que tenho que ficar na empresa.

Trabalho em uma multinacional de eletrodomésticos em São Paulo. O nome dela não interessa. O que realmente é importante é o salário. E tem sido assim há um bom tempo. Acabo priorizando o valor material das coisas e jogo fora no lixo orgânico todo o meu lado sentimental. Deve ser por isso que minha esposa me largou. Éramos casados há dois anos e onze meses. Não tivemos filhos, apenas peixes. Muitos. Uma de nossas maiores brigas foi por causa da bendita coleção de peixes exóticos dela. Só por quê derrubei o pote de ração inteiro dentro do aquário, não quer dizer que eu queira matá-los. Tudo bem que foi isso que aconteceu, mas para tudo na vida existe uma explicação.

O sol batia no meu rosto apenas para disfarçar o dia frio que estava por vir. Levantei o braço direito para dar sinal ao ônibus que passava. Era o mesmo automóvel, com o mesmo condutor, mesmo cobrador, mesmas pessoas emburradas, masma velha senhora mal-educada e mesmo acento gelado. Como descia apenas no último ponto, resolvi me sentar hoje. Quebrei a rotina. Tudo fora dos planos. O sabor doce de raspadinha e de vida bandida me permeavam.

A cada ponto, mais pessoas subiam e mais sufocante ficava. O calor me consumia de uma dotada vontade de me atirar para fora daquele convento às avessas. O barulho trambém era insuportável. O estalar dos bancos de plástico me consumiam a paciência e a lucidez.

Resolvi me levantar para tentar encontrar algo de motivante em mais um dia inútil e inacabável. Peguei minha maleta com as mãos amareladas e ao inclinar-me para frente e ajeitar-me no banco, as pessoas à minha volta já começavam um balé da dança das cadeiras. Um jovem estudante, uma mulher sobrepesa e um idoso malfeito. Quem sentaria no caloroso banco, aquecido por minhas nádegas durante o caminho impiedoso e tortuoso? Apenas me levantei e fui em direção à porta. Nem me interessava o resultado daquela gladiação pitoresca. Dois pontos em pé ao lado da porta e a estação chegou. Meu sossego acabou.

[continua...]

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Duas Moedas


         Era uma bela tarde ensolarada. A estrela central estava à pino e criava sombras aos pés das mentes humanas. A rua estava movimentada e os prédios abraçavam toda aquela constelação de criaturas. Os azulejos quebrados daquele velho restaurante de esquina a observavam. O garçom vestia um belo sapato preto engraxado pelo menino do outro lado da rua. Pagou com duas moedas de plúmbeo. Aquelas mesmas moedas haviam saído da bolsinha rosa dela que pagara o café expresso ao garçom.
            O mesmo menino continuava a engraxar os sapatos alheios. Mas estava difícil se sustentar com aquilo. Ele parou um segundo e contou os trocados que ganhara naqueles dias. Era o que ele precisava. Pediu para um outro menino tomar conta do caixote e saiu correndo com as duas e mais moedas na mão. Só parou de correr cinco quadras acima do restaurante. Era uma rua sem saída. Encontrou um velho de aproximadamente 35 anos. Velho na aparência. Tinha as mãos ásperas. Essas mesmas mãos pegaram as moedas contadas do menino e entregaram à ele uma pedra.
            O homem de aparência, às vezes até mórbida, pegou as duas e mais moedas e foi andando lentamente até uma farmácia. Entrou com toda a calma e com cautela procurou em cada prateleira uma caixa. Ela tinha uma faixa preta, pensou ele. Aonde será que está? Não me lembro do nome. Encontrei! Estendeu a mão com unhas pretas e trouxe ao peito o tesouro. Foi ao caixa e pagou com as duas e mais moedas. A atendente loira e triste entregou o remédio dentro de uma sacolinha de plástico vagabunda.
            O expediente da loira havia acabado e ela teria que correr para encontrar as primas no metrô. Pegou as duas moedas e uns trocados, se despediu do chefe de sobrancelhas grossas e foi correndo até a estação.
            No caminho tropeçou em uma guria que estava sentada na calçada. As moedas rolaram e só pararam dentro do bueiro ao lado da guria. A loira deu um grito histérico e continuou a correr até a estação. A guria se levantou, olhou aquelas moedas ao fundo. Duas em especial brilhavam. A água dos chuviscos que caíam arrastaram todas as moedas para longe. Foram embora.
            Ela ainda estava no café. Tinha a sua bolsinha rosa presa nas mãos com dedos finos. Tinha uma aliança no dedo indicador. Dentro dela estava escrito seu nome, Vida, e de seu marido, Morte. A data era 00/00/00. As moedas eram presentes da Vida. A sorte e a felicidade passaram pelas mãos dos que mais necessitavam, mas eles estavam preocupados com o futuro e não com o presente. Logo encontrariam o marido dela.

"Pegue o presente, mesmo que não seja de sua vontade."

Ela Manda


Meu coração é subordinado ao teu.
Nem sei se posso mais chamá-lo de meu.
Acho que ele não me habita mais.
Minha própria vida ficou pra traz.


Sem você [...]

[...] Quando o Sol ilumina,
O meu dia é uma sina.
Já de noite à luz da Lua,
A felicidade fica nua.

Ela chama,
Eu enlouqueço.
Ela deita,
Eu estremeço.
Faço tudo sem apreço,
Sem o não e o meu sim.

Ela manda,
Eu obedeço.
Minha amada,
Meu começo.
Minha Amanda,
Eu te peço
Não me ame mais do que mereço.

domingo, 7 de agosto de 2011

Confortavelmente entorpecido

Sentado na guia, o menino olhava para o horizonte pelo canto do olho. Seu olhar estava avermelhado e ele parecia à espera de alguém. Tinha os cabelos negros, parecidos com a cor da parede onde estava encostado. Era de uma fábrica abandonada. A rua era, na verdade, uma viela e naquela hora não tinha ninguém por lá. Ao fundo, o trem passava soltando uma fumaça branca. Aquilo o lembrou de suas brincadeiras de adolescência. Seu amigo lhe ensinara o jogo. Não era tão difícil. Lembrou também que aquele mesmo amigo tinha ido embora e não brincava mais com ele. Agora ele tinha que fazer tudo sozinho e aquilo era um fardo muito pesado para ele, mesmo tendo ombros largos.


Morava bem longe de onde estava agora. Sua caminhada ajudava na ansiedade. Ele se sentia melhor andando até lá. Na verdade correndo. Não era das pessoas mais pacientes que se pode conhecer. Mas seus sentimentos também eram muitos esquisitos. Um menino como muitos outros que existia por ali. Todos eram iguais. Não só psicologicamente, mas fisicamente também. Eram todos magros, com braços marcados, olhos baixos e cabeças vazias. Os pensamentos eram todos voltados àquilo.


Ele se levantou e começou a andar de um lado para o outro. Queria gritar, estava obstinado e não sairia dali sem pegar o que tinha que ser pego. Era um menino levado. Sempre comprava balinhas e não pagava. Roubava o dinheiro da carteira de sua mãe para consumir o que tinha de melhor da vida. A mãe fingia que não via e dava aquele sorriso de protetora. Ela sempre o fazia quando o menino saia para brincar. Era muito preocupada com a diversão dele, mas tinha também um pouco de medo das consequências de censurá-lo. Tinham uma boa condição de vida e aquele dinheirinho da carteira não faria falta. Viviam da herança que o avô do menino deixou. Ficaram com o mesmo dinheiro e vício, afinal seu avô também adorava brincar.


Uma pessoa veio andando pela rua. Era a tão aguardada encomenda. Com um moletom preto e um capuz cobrindo o rosto, o homem chegou. Sem pronunciar nada entregou um pacote ao menino. Dessa vez não eram as balinhas e nem o cheiro do velho mato que ele rolava quando criança. Era um frasquinho com um líquido transparente e forte. Ele entregou algumas notas amassadas ao homem, que se virou e foi embora de onde veio. O trem, o amigo, o avô e alguns meninos também já tinham ido embora. Logo ele também iria. Estava comprando a passagem aos poucos. Afinal, ele não era mais uma criança e aquilo não era mais uma droga de brincadeira.






The child is grown. 
The dream is gone. 
And IIIIII... have become comfortably numb.”